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Rodrigo Gomes de Mendonça Pinheiro

 

RESUMO

O presente artigo visa analisar a complexa questão que envolve a proteção de patentes sob o regime de co-propriedade perante o Poder Judiciário, especialmente quando há divergentes interesses entre os co-titulares do privilégio. Partindo da análise da garantia ao direito de ação e à segurança jurídica causada pela coisa julgada, sobretudo quanto a possível colisão entre esses dois princípios estruturantes do sistema jurídico, identificamos no plano constitucional processual uma solução que harmonize a tensão entre as referidas garantias, para que seja possível salvaguardar o direito de agir do co-proprietário que acredita que a sua patente está sendo violada, sem prejuízo da segurança jurídica que se espera das decisões judiciais.

 

ABSTRACT

This article aims to analyze the complex issue involving patent protection under the regime of  co-ownership in the courts, especially where there are diverging interests between the co holders of the privilege. Based on the analysis of the guarantee of the right of action and legal
certainty caused by res judicata, especially regarding the possible collision between these two  structural principles of the legal system, we identified in the constitutional and procedural  plan a solution to harmonize the tension between those guarantees, to be able to safeguard the  right to act co-owner who believes his patent is being violated, without prejudice to the legal certainty expected of judicial decisions.

PALAVRAS-CHAVE: Patentes; co-propriedade; direito de ação; coisa julgada.

KEY WORDS: Patents; co-ownership; right of action; res judicata.

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

É cediço que o direito admite, com razoável frequência, a co-titularidade de bens e  de direitos, como, por exemplo, a co-propriedade imobiliária, a co-propriedade sobre  automóveis e a co-propriedade sobre fundos depositados em conta-corrente conjunta.

No campo da propriedade intelectual não é diferente. Há diversas disposições na legislação brasileira que sugerem essa possibilidade, especialmente quanto a co-titularidade de patentes, entre universidades e empresas privadas, entre empregados e empregadores e entre co-inventores que também são co-proprietários, dentre outros casos.

Muitas questões importantes e ainda incipientes envolvendo a co-propriedade de patentes já foram examinadas com profundidade pela doutrina, com destaque para àquelas bem apontadas por Frank Fischer2 em artigo publicado na Revista da ABPI – Associação Brasileira da Propriedade Intelectual, especialmente nos aspectos relacionados a: (i) responsabilidade pelo processamento administrativo para obtenção do privilégio; (ii)  exploração do objeto patenteado por apenas um dos co-proprietários; e (iii) possibilidade de licenciamento ou de transferência da quota-parte de um dos co-proprietários.

Mas, dentre as diversas questões problemáticas que se apresentam quando o assunto é a co-titularidade de bens e de direitos e, em especial, de patentes, há uma que a nosso ver merece aprofundada reflexão e revisitação: a defesa em juízo de uma patente sob o regime de co-propriedade, sobretudo se, porventura, houver divergência de vontades entre os coproprietários.

De plano, a aplicação análoga das normas que versam sobre o condomínio às patentes em regime de co-propriedade, especialmente o artigo 1.314, caput, do Código Civil, poderia sugerir que a debate que se propõe seria inócua, na medida em que a referida regra permite a cada condômino que use a coisa, exerça sobre ela todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindique-a de terceiro e defenda a sua posse. Denis Borges Barbosa3 e o próprio Frank Fischer, por exemplo, já sinalizaram a possibilidade de aplicação do regime de condomínio para solucionar questões problemáticas relacionadas a co-propriedade das patentes.

Entretanto, a questão que aqui se cogita não é, a nosso ver, resolúvel de maneira tão simples como inicialmente aparenta, na medida em que as regras pertinentes ao condomínio não se afiguram, data venia, as mais apropriadas para disciplinar a hipótese da co-propriedade
de patente, seja no tocante a indivisibilidade da patente (bem incorpóreo) em contraponto a possibilidade de fracionamento da propriedade imobiliária (bem corpóreo), facultando-se aos condôminos o direito a partes determinadas da coisa, seja ainda em função de a aplicação das regras do condomínio não solucionarem problemas do ponto de vista da eficácia reflexa da sentença projetada a terceiros e a coisa julgada material em sua feição subjetiva.

Nesse particular, tem-se ciência das inúmeras problemáticas enfrentadas pelo sistema processual nas hipóteses de litisconsórcio necessário unitário, tipicamente encontrável na relação jurídica de direito material qualificada pela incindibilidade em que o juiz deve outorgar tutela jurisdicional uniforme para todas as partes que se encontram em determinado polo, in casu, a todos os co-titulares da patente. E o assunto ganha contornos ainda mais problemáticos quando se cogita da formação dessa espécie de litisconsórcio no polo ativo da ação.

Daí porque propomos que a análise da questão relacionada a defesa em juízo da patente em regime de co-propriedade seja realizada sob dois diferentes prismas: o constitucional, notadamente sob a perspectiva da tensão que potencialmente se apresenta entre o direito de ação e a segurança jurídica emanada da coisa julgada material; e o processual, já que a feição subjetiva da coisa material vincula-se a legitimação para agir e a controversa figura do litisconsórcio ativo necessário.

 

O PRIMEIRO LADO DA MOEDA: O DIREITO DE AÇÃO

Seria até mesmo despiciendo registrar a imprescindibilidade do direito de ação para a instituição e a manutenção da ordem jurídica de um Estado Democrático de Direito, uma vez que o monopólio estatal da jurisdição resultou na impossibilidade de o cidadão, como regra, autotutelar os direitos que lhe dizem respeito e os conflitos de interesses deles decorrentes, o que implica reconhecer que o Estado também se encarregou, por via de consequência, de promover a tutela dos direitos de forma ampla e completa.

Nesse particular, ensina Robert Alexy que os “direitos a proteção são, nesse sentido, direitos constitucionais a que o Estado configure e aplique a ordem jurídica de uma determinada maneira no que diz respeito à relação dos sujeitos de direito de mesma hierarquia entre si”4.

Portanto, o Estado tem o dever não apenas de estruturar a ordem jurídica, legislando sobre direitos em abstrato, mas também tem o dever de criar mecanismos aptos a efetivar, no mundo dos fatos, as transformações jurídicas abstratamente consideradas, de modo a fazer incidir, no plano fático, a norma jurídica por ele concebida.

A propósito, Luiz Guilherme Marinoni anota que “o art. 5º, XXXV, da Constituição da República, garante o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, o qual obriga o Estado a instituir técnicas processuais idôneas à tutela dos direitos. O cidadão que afirma ter um direito deve ter ao seu dispor as medidas e os instrumentos necessários à realização do seu eventual direito”5.

No mesmo compasso, novamente Alexy assinala que “direitos a procedimentos judiciais e administrativos são direitos essenciais a uma “proteção jurídica efetiva”. É condição de uma proteção jurídica efetiva que o resultado do procedimento proteja os direitos materiais dos titulares dos direitos fundamentais envolvidos”6.

Logo se vê, portanto, que o direito de ação é uma garantia constitucional de amplo espectro e claramente estruturante do sistema jurídico, sobretudo porque vinculado a própria existência e a manutenção do Estado Democrático de Direito. Como bem observa Ada Pellegrini Grinover, “vãs seriam as liberdades do indivíduo, se não pudessem ser reivindicadas e defendidas em Juízo. Mas, é necessário que o processo possibilite efetivamente à parte a defesa de seus direitos, a sustentação de suas razões, a produção de suas provas. A oportunidade de defesa deve ser realmente plena, e o processo deve desenvolver-se com aquelas garantias, em cuja ausência não pode existir o “devido processo legal”, inserido em toda Constituição realmente moderna”7.

Contudo, essa amplíssima e justificável relevância conferida ao direito de ação não significa, sob nenhum aspecto, que ele deva ser visto com caráter absoluto. Ao contrário, o direito de ação, além de atender a certas condições e pressupostos para que seja exercido de maneira legitima, deve ser constantemente harmonizado com os demais princípios e garantias constitucionais eventualmente colidentes e em favor dos quais ele deverá ceder em determinadas circunstâncias.

 

O OUTRO LADO DA MOEDA: A AUTORIDADE DA COISA JULGADA E A SEGURANÇA JURÍDICA POR ELA PROPICIADA

Sabendo-se que o direito de ação é imprescindível para construção do Estado Democrático de Direito, não se pode olvidar, por outro lado, que a coisa julgada material é o instrumento que efetivamente materializa esse mesmo Estado, sobretudo no tocante as atividades desenvolvidas pelo Poder Judiciário. Como adverte Nelson Nery Junior, “a coisa julgada é elemento de existência do estado democrático de direito”8.

É conhecida a concepção que vincula a coisa julgada material aos conceitos de segurança jurídica e de estabilidade das relações sociais conflituosas, na medida em que se atribui uma determinada qualidade a decisão judicial – a imutabilidade – que impede que a relação litigiosa seja indefinidamente rediscutida e que a questão controvertida venha a ser novamente decidida pelo Poder Judiciário, em qualquer processo.

A despeito de sua consagração constitucional, a doutrina e a jurisprudência são firmes no sentido de indicar que as feições, os contornos e os limites da coisa julgada são fixados pela legislação ordinária, especialmente pelo CPC. Para o objetivo do presente ensaio, impõe-se analisar os limites subjetivos da coisa julgada material, ou seja, quem estará submetido a autoridade da res judicata e para quem se projetam os seus efeitos, matéria disciplinada pelo artigo 472 do CPC, e que funcionam, segundo os ensinamentos de Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, como a “demarcação da área de influência da autoridade da coisa julgada”9.

Como bem apontam os ilustres processualistas, “apenas as partes e seus sucessores se submetem à coisa julgada. Vale dizer: tão-somente para as partes e para os seus sucessores a declaração contida no dispositivo da sentença adquire imutabilidade e indiscutibilidade”10. Isso porque, conforme lecionam Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira, de acordo com “… o espírito do sistema processual brasileiro, ninguém poderá ser atingido pelos efeitos de uma decisão jurisdicional transitada em julgado, sem que se lhe tenha sido garantido o acesso à justiça, com um processo devido, onde se oportunize a participação em contraditório”11.

Diante disso, há muito diverge a doutrina sobre a possibilidade de a sentença proferida inter partes atingir a esfera jurídica de terceiro que não fez parte da relação processual. Em outras palavras, para o nosso estudo, paira a dúvida se um co-titular da patente que não participou da lide aforada pelo outro co-titular poderá ser atingido pela sentença de procedência ou de improcedência ou, ainda, pela autoridade da coisa julgada produzida em ação de que não foi parte.

De um lado, adverte Enrico Tullio Liebman que não há que se falar em extensão da coisa julgada ao terceiro co-legitimado (in casu, ao co-titular da patente) na hipótese de procedência da ação aforada pelo outro co-legitimado, mas sim em extensão dos efeitos da sentença proferida favoravelmente ao co-titular que não participou da relação processual. Acrescenta o ilustre processualista que, também na hipótese inversa, isto é, se julgada improcedente a demanda, o co-legitimado que não participou do processo não estaria sujeito a autoridade da coisa julgada material nele produzida, na medida em que poderia demonstrar, em sua própria ação, a injustiça da decisão proferida desfavoravelmente a pretensão12. No mesmo sentido são as lições de Athos Gusmão Carneiro13 e de Ovídio Baptista da Silva14.

Noutro giro, José Rogério Cruz e Tucci, vinculando os limites subjetivos da coisa julgada a uma questão antecedente, qual seja, a legitimidade para ser parte, afirma que “… existem ainda hipóteses nas quais, pela natureza da relação jurídica debatida, que geralmente reclama tutela constitutiva, é exigida a participação de mais de um réu ou mais de um autor no processo, ou seja, de todos que são titulares de um mesmo direito subjetivo ou ligados por um único vínculo jurídico (denominado rapporto di diritto sostanziale unico con pluralità di soggetti), sendo a obrigatoriedade do litisconsórcio definida, não pelo direito processual, mas pelo direito material controvertido (secundum tenorem rationis)”15.

Embora reconheça que, a rigor, a ausência de litisconsorte necessário implicaria em ineficácia absoluta da sentença em relação a todas as partes (inclusive as que figuraram no processo), Tucci, valendo-se dos ensinamentos de Enrico Allorio, de Michele Taruffo e de José Roberto dos Santos Bedaque, sugere a possibilidade de extensão não apenas dos efeitos da sentença, mas também da própria autoridade da coisa julgada material a terceiros que não participaram da relação processual da qual ela se originou, desde que a decisão transitada em julgado fosse favorável aos interesses da parte ausente e não haja interesse de agir da parte em busca da reversão da decisão16.

Como bem observado por Tucci, as questões relacionadas aos limites subjetivos da coisa julgada material e a eficácia reflexa da sentença projetada a terceiros estão relacionadas, umbilicalmente, a uma questão antecedente, qual seja, a legitimação de partes no processo, assim compreendida como a pertinência subjetiva entre os sujeitos da relação jurídica de direito material e de direito processual, na medida em que apenas partes legítimas podem regularmente figurar como sujeitos parciais do processo, seja no polo ativo, seja no polo passivo, sujeitando-se às decisões judiciais e, em última análise, à própria autoridade da coisa julgada material.

Nessa perspectiva, diversas questões problemáticas podem ser desde já vislumbradas quando se coloca, no plano processual, uma relação jurídica de direito material que envolva uma patente em regime de co-titularidade, tais como:

(i) se isoladamente proposta a ação pelo co-titular da patente em face do pretenso infrator e vindo ela a ser julgada improcedente porque a perícia atestou a inexistência de infração, o outro co-titular, que não participou do primeiro processo, estaria autorizado a propor ação judicial em face do mesmo réu? A resposta seria a mesma se o juízo de improcedência fosse motivado pela inércia probatória do co-titular litigante, na forma do artigo 333, inciso I, do CPC?;

(ii) o réu, beneficiado pelo juízo de improcedência em função da prova que atestou a inexistência de infração em ação proposta isoladamente pelo co-titular da patente, poderá opor a coisa julgada material formada nesse processo em futura ação proposta pelo outro co-titular da patente que não participou do processo anterior? A resposta seria diversa se o juízo de improcedência houvesse sido motivado pela inércia probatória do autor (artigo 333, inciso I, do CPC)?;

(iii) imagine-se que são propostas simultaneamente duas demandas, uma por cada um dos co-titulares da patente, em face do mesmo réu. Na primeira, é concedida a antecipação da tutela inibitória, a fim de que o réu cesse a comercialização do produto tido por contrafeito. Na segunda, é negada a antecipação da tutela inibitória, permitindo-se ao réu a comercialização do produto tido por contrafeito. O réu deve atender a qual dos comandos judiciais?

Os questionamentos acima aventados demonstram o quão problemática é a defesa em juízo da patente sob regime de co-titularidade, sobretudo em virtude da incindibilidade da relação jurídica de direito material que envolve os co-proprietários do privilégio. E, a nosso ver, a resolução dessa problemática passa pela delimitação dos contornos subjetivos da lide e sobre a existência, ou não, da polêmica figura do litisconsórcio ativo necessário unitário.

 

A CONTROVERTIDA QUESTÃO DO LITISCONSÓRCIO ATIVO NECESSÁRIO UNITÁRIO E SEUS REFLEXOS CONSTITUCIONAIS E PROCESSUAIS

A existência da figura do litisconsórcio ativo necessário unitário ainda é alvo de intenso debate doutrinário, como já anunciado.

Posicionando-se de maneira favorável, por exemplo, assevera José Roberto dos Santos Bedaque que “É necessário também o litisconsórcio sempre que, em razão da natureza da relação jurídica de direito material, o resultado do processo deva reger de maneira idêntica a situação de cada um dos que dela participam. Todos devem ter a mesma sorte no plano jurídico-substancial” e que “Trata-se daquelas situações incindíveis, porque o provimento judicial irá reconhecer ou impor regime jurídico a ser suportado de maneira uniforme por todos os integrantes da relação substancial”.

E prossegue o doutrinador: “Tratando-se de litisconsórcio necessário passivo, tem o autor o ônus de promover a citação de todos os réus, no prazo estabelecido pelo juiz, formando-se o litisconsórcio ulterior. Se não o fizer, o resultado será a extinção do processo sem julgamento de mérito, por carência da ação, o mesmo ocorrendo nas raras hipóteses de litisconsórcio ativo necessário”. E mais adiante, afirma que “Será o autor, portanto, considerado carecedor da ação por ilegitimidade ativa ou passiva. Se a situação de direito material incindível impõe a presença no processo de todos os que dela participam, o requisito da legitimidade somente se aperfeiçoa se todos integrarem o respectivo pólo da relação processual. A legitimidade é conjunta, e é insuficiente a presença de apenas um ou alguns”17.

Em sentido diametralmente oposto, adverte Fredie Didier Jr.: “Não há hipótese de litisconsórcio necessário ativo. Nem poderia haver”. E arremata: “O fundamento dessa conclusão é apenas um: o direito fundamental de acesso à justiça (inciso XXXV do art. 5º da CF/88). O direito de ir a juízo não pode depender da vontade de outrem. Se houvesse litisconsórcio necessário ativo, seria possível imaginar a situação de um dos possíveis litisconsortes negar-se a demandar, impedindo o exercício do direito de ação do outro”18.

Trata-se, sem dúvida, de um argumento de autoridade e absolutamente respeitável, na medida em que, se concretizada a situação que fora cogitada pelo ilustre processualista, e que não se deve reputar incomum no plano fático, haveria uma grave e indiscutível violação a garantia constitucional do direito de ação.

A questão também se apresenta sob outra ótica – complementar a primeira – na medida em que há nítida colisão de direitos fundamentais e de garantias constitucionais: o direito de agir versus a liberdade de agir19, exigindo, assim, solução que compatibilize a tensão desses valores e princípios constitucionais de modo a harmonizá-los sem que se sacrifique algum dos direitos envolvidos.

Noutro giro, se o conflito de interesses versado no processo judicial exige do Estado pacificação com segurança e efetividade, conforme já demonstramos, faz sentido afirmar que a exata delimitação subjetiva da coisa julgada – instituto de índole igualmente constitucional – é um componente essencial nesse contexto.

Apenas há coisa julgada hígida se as partes eram legítimas para propor e para responder a ação proposta, motivo pelo qual a preocupação anteriormente esposada por Bedaque também se revela plenamente justificável.

Diante desse cenário de intensa colisão de diversos princípios constitucionais e de direitos e garantias fundamentais, algumas soluções são usualmente apresentadas pela doutrina.

A primeira delas propõe que o co-legitimado (in casu, o co-proprietário da patente) que não participou da relação processual apenas estaria sujeito aos efeitos reflexos da sentença, de modo a aproveitar o resultado do processo que lhe fosse benéfico, mas não estaria impedido de discutir a justiça da decisão desfavorável em futuro e novo processo contra o mesmo réu.

Essa solução, como se percebe, coloca o direito de ação, o devido processo legal e o contraditório em posição de ampla preponderância, na medida em que salvaguarda o acesso à justiça ao co-titular que quer demandar e também ao co-titular que, mesmo não desejando demandar em conjunto com seu consorte, resguarda-se ao direito de agir posteriormente.

Em nosso sentir, esse posicionamento não se mostra o mais apropriado, justamente porque sacrifica a segurança jurídica sob a perspectiva do réu, submetendo-o a uma série interminável de ações propostas, isolada e sucessivamente, por cada um dos co-proprietários, o que Liebman já havia antevisto e detectado como um problema de difícil solução.

De igual modo, também não nos parece adequado estender os efeitos da coisa julgada material desfavorável a terceiro que não participou do processo, o que representaria, em nossa opinião, uma grave vulneração ao devido processo legal, ao contraditório e a ampla defesa, como também nos parece impróprio pensar em extinção do feito sem resolução do mérito por ausência de litisconsorte ativo necessário unitário, sob pena de afronta ao direito de acesso à justiça.

 

UMA PROPOSTA DE HARMONIZAÇÃO

De acordo com tudo que se viu, a questão que envolve a defesa em juízo da patente em regime de co-propriedade, por envolver a direta colisão de direitos e garantias fundamentais e de princípios constitucionais no plano processual, reclama solução que salvaguarde e compatibilize esses direitos, garantias e princípios, sem o sacrifício de nenhum deles. Por se tratarem de valores superiores, que não apenas conferem sentido e orientação às demais normas, mas também que condicionam a criação das outras normas do sistema21, os conflitos entre eles devem ser resolvidos mediante a técnica de ponderação de valores, preponderando o princípio que, no caso concreto, apresenta-se com maior peso e valor.

A ponderação de valores, segundo a contemporânea lição de Luís Roberto Barroso, compõe-se de um processo de três etapas, sendo que, na última “… os diferentes grupos de normas e a repercussão dos fatos do caso concreto estarão sendo examinados de forma conjunta, de modo a apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diversos elementos em disputa e, portanto, o grupo de normas que deve preponderar no caso. Em seguida, será preciso ainda decidir quão intensamente esse grupo de normas – e a solução por ele indicada – deve prevalecer em detrimento dos demais, isto é: sendo possível graduar a intensidade da solução escolhida, cabe ainda decidir qual deve ser o grau apropriado em que a solução deve ser aplicada. Todo esse processo intelectual tem como fio condutor o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade”22.

Desse modo, a nosso ver a solução mais adequada e que verdadeiramente harmoniza essa colisão de maneira equilibrada e justa é a admissão no direito brasileiro da intervenção iussu iudicis, conferindo-se interpretação expansiva e conforme a Constituição ao vigente artigo 47, caput e parágrafo único, do CPC.

Nesse particular, leciona Fredie Didier Jr., que essa espécie de intervenção “nada mais é do que o ingresso de terceiro em processo pendente por ordem do juiz”23. De indiscutível incidência nas hipóteses do litisconsórcio necessário no polo passivo, já que expressamente previsto no parágrafo único do artigo 47 do CPC sob pena de extinção do processo por ausência de parte necessária, o instituto inexplicavelmente tem aplicação comedida, quase nula, quando o polo processual se inverte.

As benesses da admissão da intervenção iussu iudicis como meio eficaz de solucionar esse infindável embate doutrinário sobre a questão da defesa em juízo de bens e de direitos (in casu, das patentes) cuja propriedade é compartilhada foi bem sintetizada pelo ilustre doutrinador. Registra ele que “A providência justifica-se como medida de efetivação do direito fundamental ao contraditório e, ainda, como proteção do princípio da igualdade, porquanto procure evitar que o réu se submeta a um processo cujo resultado possa ser impugnado por um terceiro. Garante ao terceiro, também, o exercício da liberdade fundamental de demandar, não lhe sendo imposta a condição de demandante: o terceiro não estaria obrigado a demandar. Está, ainda, em consonância com o princípio da proporcionalidade, pois não causa qualquer prejuízo às partes originárias e se reputa necessária como forma de proteger os direitos fundamentais retromencionados”24.

Embora Fredie Didier Jr. rejeite a existência do litisconsórcio ativo necessário sob o fundamento de que, nesse caso, haverá vulneração ao direito de ação, preferindo, assim, qualificar a intervenção iussu iudicis como fenômeno diverso da provocação para demandar (provocatio ad agendum), quer nos parecer, ressalvadas as vênias de estilo, que tem cabimento a intervenção nessa modalidade justamente em função da obrigatoriedade da presença, no processo, daquela parte que é originariamente o litisconsorte ativo necessário do autor da demanda e que, se se opor a pretensão dele, passará a figurar no polo oposto.

Nesse particular, nos filiamos ao posicionamento adotado por Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, ao lecionarem que, nessa hipótese, “O autor deve movê-la [a ação], sozinho, incluindo aquele que deveria ser seu litisconsorte ativo, no pólo passivo da demanda, como réu, pois existe lide entre eles, porquanto esse citado está resistindo à pretensão do autor, embora por fundamento diverso da resistência do réu. Citado, aquele que deveria ter sido litisconsorte necessário ativo passa a integrar de maneira forçada a relação processual. Já integrado no processo, esse réu pode manifestar sua vontade de: a) continuar no pólo passivo, resistindo à pretensão do autor; b) integrar o pólo ativo, formando o litisconsórcio necessário ativo reclamado pelo autor. Em qualquer dos dois casos, a sentença será dada em relação a ele, litisconsorte necessário renitente, e produzirá normalmente seus efeitos. O que importa, para que se cumpra a lei e se atenda aos preceitos do sistema jurídico brasileiro, é que os litisconsortes necessários – isto é, todos os partícipes da relação jurídica material discutida em juízo – integrem a relação processual, seja em que pólo for”.

E arrematam os ilustres doutrinadores: “Estando no processo, o potencial litisconsorte necessário ativo, que não quis promover a ação em conjunto com o autor, é inexoravelmente réu e, nessa condição, pode continuar se opondo à pretensão do autor, justificando a lide que o tornou réu, agindo, por exemplo, de forma a ajudar o réu contra o autor (Blomeyer. ZPR², § 112, I, p. 642). Note-se que o CPC 213 permite a citação não apenas do réu, mas também do interessado”25.

Registre-se que embora não haja exatamente, no sistema processual brasileiro, a intervenção por ordem do juiz nos exatos moldes daquela existente no direito processual italiano, as considerações realizadas sobre o artigo 107 do Codice di Procedura Civile são perfeitamente aplicáveis para conferir ao vigente artigo 47, caput e parágrafo único, do CPC, a extensão necessária para solucionar definitiva dessa controvérsia.

Nesse particular, acertadamente lecionam os eminentes Luigi Paolo Comoglio, Corrado Ferri e Michele Taruffo que “La chiamata del terzo iusso iudicis determina, secondo la constante giurisprudenza, uma situazione di litisconsorzio necessario c.d. <<processuale>> e di conseguenza la controversia si risolve in una situazione di indiscindibilità della causa”26.

Em suma, e à guisa de conclusão, é nossa opinião que a intervenção iussu iudicis, que a nosso ver não encontra óbice na atual sistemática processual brasileira, representa a melhor forma de harmonização dos princípios constitucionais e dos direitos e garantias fundamentais envolvidos, permitindo tanto aos co-titulares da patente, quanto ao réu supostamente infrator desse direito, o exercício amplo do direito de ação e de defesa, desenvolvidos sob o manto do devido processual legal e do contraditório, propiciando as partes a indispensável segurança jurídica obtida pela formação hígida da coisa julgada material, inclusive em sua perspectiva subjetiva, que efetivamente atinja a almejada pacificação social que se espera do Estado-Juiz.

 

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